Ao falar de direito e tecnologia, ao contextualizar o direito diante de tamanhas mudanças comportamentais, não há como não falar sobre nossos direitos fundamentais e nossas garantias constitucionais.
O meio virtual nos traz uma nova possibilidade de hiperdimensionamento de danos (em todos os seu sentidos), bem como aumenta o número de ações podem ser consideradas crimes. Sim! Crimes virtuais.
Para iniciar uma conversa sobre a violação desses direitos e garantias no meio virtual, é necessário, inicialmente, entender o meio físico. O Prof. Nilzardo Carneiro Leão, nos brinda com sua brilhante explanação. Em um post posterior trarei a mesma ideia de violação no meio virtual.
Aproveitem a leitura.
Abraço,
Paloma Mendes
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DIREITOS FUNDAMENTAIS,
GARANTIAS CONSTITUCIONAIS E PROCESSO PENAL
NILZARDO CARNEIRO LEÃO
A nominação dada ao presente trabalho, pela necessidade de
compreensão do mais amplo e genérico para depois chegar-se à especificidade,
sem que haja prevalência ou predominância
de um sobre o outro na escala
valorativa do entender científico e reconhecimento e aplicação no Estado de Direito
Democrático, representa a
consciência de que é na aplicação dos direitos fundamentais no âmbito interno
que se irá determinar as regras e preceitos
não apenas em uma Constituição, diploma maior na estrutura do Estado,
como no processo penal, este entendido como a projeção prática, a “longa manus”
da regra constitucional garantidora dos
direitos e liberdades fundamentais.
A análise e compreensão dos direitos fundamentais no
universo do Direito impõe uma precisão de linguagem para entendimento da sua
exteriorização em princípios, ou seja, compreensão e precisão de
conceitos.
A formulação de um sistema
de liberdades - e o conjunto constitucional dos direitos e garantias fundamentais
é o sistema maior do Estado de Direito Democrático há de
encontrar, no seu universo, proposições que se compreendam através de conexões e complementações terminológicas,
que permitam sua aplicação rápida
através das regras do processo penal.
Porque direitos fundamentais,
direitos humanos, não são nem podem ser enfocados como objeto apenas e
exclusivamente acadêmico ou técnico.
Eles existem, pois reconhecidos, para serem aplicados.
Claro, porém, que para
ser construído esse sistema, representativo de um conjunto de princípios
( de direitos e garantias fundamentais) , ou melhor dizendo, para
diferenciar os múltiplos universos do conhecimento, destacando e dando
dignidade aos direitos humanos, o
homem utiliza palavras, expressões, termos, construções gramaticais especiais,
etc., já destacado, isso, por Hegel,
ao demonstrar que a linguagem é o momento de ter o homem a percepção do ser:
“A linguagem dá às sensações ou
representações uma segunda existência, mais alta do que a imediata, uma
existência que tem vigor no domínio da
representação.” (in “Introdução ao Pensar”, de A.Buzzi, pg.20).
Da maior importância,
pois, a perfeita aplicação da linguagem e utilização da palavra, isto é, a
exata terminologia, para precisar o saber científico, especificando e valorando
cada objeto que se pretende conhecer e concisa no seu real conceito. O valorar palavras e
criar significados constitui uma das dimensões do ser-no-mundo. Disso decorre ser fundamental, para
compreensão do pretendido, direitos
humanos e suas garantias, a segurança e harmonia conceituais, porque através da expressão, no
tempo histórico, será possível a construção não só de estruturas a nível
constitucional, como de técnicas de desenvolvimento e aplicações práticas
através do processo penal.
A introdução que ora se
faz torna-se indispensável, na medida em que se venha buscar o entendimento do
que seja direitos humanos, erigidos
como regras de direito supra-estatais,
como normas constitucionais de direitos e garantias individuais no direito
interno e a ser efetiva e plenamente aplicada através do processo penal, pelo
que a linguagem tem de ser precisa, clara e conceitualmente exata.
Se a expressão direitos humanos é pouco significativa sob o aspecto cientifico e
até mesmo redundante na sua precisão (há outros direitos que não sejam humanos?),
impõe-se a manutenção do termo pela consagração e pela aceitação
internacionais, com o objetivo de trazer
a compreensão de que há um grupo de
direitos diferenciados dos demais, pela sua importância e essencialidade para o
Homem na sua individualidade, como ser social, e para a compreensão do Estado de
Direito Democrático. Aqui,
algumas indagações podem ser feitas:
a - quais são esses direitos?
b - como se distinguem de outros
direitos?
c - quais são suas estruturas e
caracteres?
d - como evoluíram esses direitos no
tempo e no espaço?
e - como surgiram as Declarações de
Direitos?
f - quais são, na atualidade, os direitos humanos reconhecidos?
g - estão eles completados ou podem
surgir novos direitos?
h - quais os mecanismos legais de
direito interno garantidores desses direitos?
i - como devem ser estruturadas a
regras de processo penal para garantia pronta e eficaz desses direitos?
Não é aqui o momento de
desenvolver-se, com detalhes , sob o ponto de vista terminológico, quais as
diferentes denominações para esses
direitos até sua consagração , inclusive pela Organização das Nações Unidas,
de Direitos
do Homem, Direitos Humanos. Mas, uma rápida incursão
poderá destacar, através dos tempos, como foram e são vistos, compreendidos e
nominados esses direitos:
a - revelados por Deus (Moisés - Lei das XII Tábuas)
ou direitos criados pelo Homem;
b - Direitos Naturais ou Direitos Adquiridos
(conquistados);
c - Direitos Primários ou Direitos
Secundários;
d - Direitos Construtores ou Direitos
Construídos
e - Direitos Imediatos ou Direitos
Mediatos.
Norberto Bobbio, o grande jus-filódofo italiano,
dá-nos a sua importante concepção sobre o surgimento, crescimento e ampliação
constante dos direitos humanos Diz:
“Do ponto de vista teórico sempre
defendi que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos
históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por
lutas em defesa de novas liberdades, contra velhos poderes, e nascidos de modo
gradual , não de uma só vez e nem de uma vez por todas.
O
problema - sobre o qual, a que parece, os filósofos são convocados a dar seu
parecer - do fundamento absoluto, irresistível, inquestionável, dos direitos do
homem é um problema mal formulado: a liberdade religiosa é um efeito das guerras
de religião; as liberdades civis, da luta dos parlamentos contra os soberanos
absolutos; a liberdade política e as liberdades sociais do nascimento, crescimento e amadurecimento
do movimento dos trabalhadores assalariados, dos camponeses com pouca ou
nenhuma terra, dos pobres que exigem dos poderes públicos não só o
reconhecimento da liberdade pessoal e das liberdades negativas, mas também a
proteção do trabalho contra o desemprego, os primeiros rudimentos de
instrução contra o analfabetismo, depois a assistência para a invalidez e a
velhice...”( “A Era dos Direitos”, pg5).
A serem aceitos os fundamentos trazidos pelo jurista
italiano, é de se chegar, à conclusão de
que os direitos humanos, na
atualidade, têm como problema fundamental não o justificá-los mas protegê-los,
e, também, que sendo históricos, nascem e crescem com a cultura. A cultura é,
fundamentalmente, a capacidade que tem o homem, e por conta disso, a sociedade,
de refletir sobre si mesma . Cultura apresenta acima de tudo, visão, revisão e previsão, isto é, o conhecimento
aplicado nas três dimensões do tempo, ou seja, de um passado pensado e
revisto, com o que se poderá cavalgar realidades sociais do já vivido,
através da ação presente e projetando-se
para o porvir. Três tempos, o passado, o presente e o futuro existentes em um
tempo único, o da vida de cada um, caracterizando-se pelo processo de pensar “o
que fazer, quando fazer, porque fazer.”
Ela, a cultura, existe na medida em que pessoas se colocam frente a outras como seres que se relacionam socialmente,
buscando direitos, revelando-se como uma forma de pensamento que se materializa
no viver e conviver sociais, sendo, pois, dinâmica, eis que produto da vida
vivida, que se compreende em mutação, e histórica, na medida em que está
atrelada ao homem e partindo do que surge e se compreende como fundamental: os direitos humanos. A
Cultura é sempre múltipla, já que
não existe uma única visão da realidade, da sociedade e do mundo, mas
diferentes visões que se confrontam e se
debatem e a sua manifestação caracteriza os padrões e formas de viver do homem
situado no tempo.
Se
assim é, a história do homem, a história do homem no tempo, que é também sua
cultura, faz desenvolver e reconhecer o que sejam direitos humanos. Daí dizer-se:
“ não nascem todos de uma vez.
Nascem quando devem e podem nascer.” Isso faz destacar a assertiva de Oliveira Baracho:
“Ocorre
um enriquecimento considerável da lista de direitos e liberdades, pelo que os
constituintes e legisladores enunciam liberdades omitidas ou desconhecidas nas
origens do liberalismo. As formulações abstratas e vagas são abandonadas, pelo
que dão lugar ao reconhecimento de direitos concretos dos indivíduos situados
em seu contexto social e econômico. Aparecem direitos de grupos (famílias,
associações, sindicatos, surgem
mediadores e corpo intermediário); os direitos econômicos e sociais que ampliam largamente os direitos civis já proclamados: direito ao
seguro social, ao trabalho, ao lazer, à educação, à cultura e o direito de
greve.”
A
que se pode acrescer direito a um desenvolvimento sustentável, a uma natureza
ecologicamente sadia, na medida em que representa ótica diferenciada do direito
à vida e do direito à saúde. A evolução, ou multiplicação dos direitos humanos tem, pois, íntima relação e conexão com a mudança social, que,
exatamente por ser mudança, traz em si a aquisição, sempre, de novos direitos
fundamentais, direitos humanos.
Pode-se,
então, falar em gerações de direitos
humanos, que não é para provocar uma feição fragmentada, mas para ampliar,
sempre, a visão globalista do que representam e significam como um todo
uniforme e indiferenciado. Cuidar de geração
não significa sucessão geracional, mas seu preenchimento no tempo
histórico ou a nível cultural. Daí
falar-se em direitos humanos de
primeira, segunda, terceira, etc. gerações, que não significa, de forma alguma,
sucessividade de direitos. Um não é a negação nem mais significativo que outro,
mas completam-se e não só complementam-se. E mais, alguns desses direitos foram
progressivamente desdobrando-se e
mesmo ampliando-se em seu campo de
efetividade. Pode-se,
pois, sem diminuição ou mais valia de
qualquer dos direitos humanos, cuidar-se em grupamentos, aqui de ordem meramente metodológica e
similitude:
De
primeira geração ( direitos
individuais - direitos políticos)
a - direito à vida e direito de
locomoção;
b - direito à liberdade política;
c- direito à igualdade, inclusive
social;
d - direito à liberdade religiosa e de
culto;
e - direito à proteção contra a
tortura;
f - direito à educação e instrução;
g - direito ao devido processo legal,
com instrução processsual contraditória e plenitude de defesa;
h
- direito a ser
presumido inocente e direito ao silêncio;
i
- direito à inviolabilidade
da casa e de proteção contra prova ilícita;
j
- direito ao duplo grau de jurisdição e a
decisões fundamentadas;
l
- direito às
garantias dos direitos fundamentais (HC e MS);
m - direito a igual proteção e
assistência jurídica técnica;
n
- direito de voto e
de participação ativa e passiva na organização do Estado (direito à
participação política);
De segunda geração:
a - direito ao trabalho;
b - direito à saúde;
c - direito de organização;
d - direito de greve;
e - direito à proteção social;
f - direito a um salário digno;
g - direito de proteção à família
(direito de proteção à criança e ao idoso);
h - direito ao uso social da
propriedade;
De terceira geração (protetivo ou desenvolvimento sustentável)
a - direito a uma vida sadia;
b - direito à proteção da natureza
(direito de proteção à fauna, à flora);
Têm esses direitos de terceira geração um conteúdo de
heterogeneidade e diversificação, forma difusa, de proteção a direitos de
grupos, de minorias de qualquer natureza, etc.
Já na atualidade, cuida-se
de uma quarta geração de direitos,
que vem trazendo grande preocupação à comunidade científica e humanística, pelo
aumento na capacidade do homem do conhecer e desenvolver novas tecnologias do
saber, ante o aspecto não apenas dramático
mas principalmente ético, face às
repercussões sobre a humanidade, ante possível mau uso dessa apreensão
de conhecimentos:
a - direito à pesquisa biológica;
b
- direito à
engenharia genética;
c - direito à experimentos nucleares;
d - direito à exploração da informática;
Vê-se, pois, que direitos
fundamentais ampliam-se e não se esgotam no tempo.
A compreensão dos direitos fundamentais não valem só para
o Homem na sua individualidade: eles representam a projeção de sua dignidade
frente ao Estado. Direitos humanos significa sociabilidade, porque a sociedade
contemporânea, exatamente por seu desenvolver histórico e cultural, reconhece
que o homem, qualquer homem, tem direitos ante o Estado e que é dever desse
mesmo Estado, respeitá-los e garanti-los, e organizar-se de forma tal que possa
satisfazer sua plena realização,
fornecendo o exato conceito do Estado de Direito. Do Estado de Direito Dem0ocrático.
Pedro
Nikken, cuidando do “Conceito de Direitos Humanos”, destaca que o
reconhecimento desses direitos não é
apenas concessão da sociedade mas exigência que se desdobra em:
a - Estado de Direito, onde o
exercício do poder deve sujeitar-se a
regras e mecanismos para proteção e
garantia dos direitos humanos;
b - universalidade: proclamados
na Declaração de Viena em 25 \/Junho/93 e adotada pela Conferência Mundial dos
Direitos Humanos de que “não se admitem dúvidas”, pois são universais,
indivisíveis e independentes e os Estados têm o dever, sejam quais forem seus
sistemas políticos, econômicos e culturais, de promover e proteger todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais”;
c - transnacionalidade: se os direitos humanos são inerentes à
pessoa, não dependem da nacionalidade, território, cor, religião, sexo: ela os
portará sempre, pois estão eles acima dos Estados e da soberania. Daí o
crescimento cada vez maior de organizações internacionais não convencionais;
d - irreversibilidade: uma vez
sendo determinado direito formalmente
reconhecido como inerente à pessoa humana, fica definitiva e irrevogavelmente
integrado à categoria daqueles cuja inviolabilidade deve ser respeitada e
garantida. Daí não admitir relativismos
nem reversibilidade, não podendo deixar de ser reconhecido por decisão governamental;
e - elasticidade: como são
inerentes à pessoa, sempre è possível,
pela cultura e pelo desenvolvimento histórico, estender o âmbito de proteção de
um direito, erigido e reconhecido como direitos
humanos, e, assim,
anteriormente não conhecidos nem
gozados.
Não basta, porém, ser formalmente
Estado de Direito: impõe-se para plena
garantia e reconhecimento dos direitos
fundamentais , que haja um Estado Democrático de Direito. Essa a lição do
Prof. Canotilho, constitucionalista português:
“Quer
se trate dos direitos fundamentais clássicos, quer dos modernos direitos
sociais, econômicos e culturais, a eles cabem importantes funções no Estado de
Direito Democrático. Em primeiro lugar, uma função democrática: são direitos
subjetivos de participação na vontade política, motivos pelos quais são considerados
como “fundamentos funcionais da democracia”. Em segundo lugar uma função
social: eles são o fundamento de prestações sócio-econômicas,, sociais e
culturais do Estado em favor dos cidadãos. Em terceiro lugar, os direitos têm uma função de garantidor do Estado de
Direito”
Se os diplomas internacionais,
consagrados e reconhecidos pelos Estados destacam os direitos fundamentais, mais do que evidente que esse
reconhecimento fazem-nos penetrar no
âmbito do direito interno desses mesmos Estados, em autêntica concreção, ao
disposto nos textos constitucionais. No Brasil, destaca-se que
o Estado de Direito Democrático tem como fundamentos, dentre outros, a cidadania
e a dignidade da pessoa humana.
O
exercício da cidadania, que é a conduta do homem no meio social, projeta,
sempre, o exame de uma relação de poder, porque em todo relacionamento humano
sempre há de ser conjugado dialeticamente seus elementos básicos: detentor e
destinatário da ordem, onde o essencial para o Estado, detentor do mando e do
comando, será o reconhecimento da
dignidade da pessoa humana. Mais
ainda: a estrutura democrática brasileira, com seus sistemas de controle e uso
do poder, garante ao homem o exercício da cidadania e os direitos fundamentais,
de tal forma que, expressamente, consagra em suas relações internacionais,
dentre seus princípios, o da prevalência
dos direitos humanos.
De se destacar que o aceito e reconhecimento pelo Brasil
no âmbito internacional, através das Declarações de Direitos e Convenções, passam
a integrar o próprio campo do direito interno de natureza constitucional:
“Art.5º
§2º
- Os direitos e garantias expressos nesta Constituição
não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou
dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja
parte.”
E se no art. 5º, cuidou a Constituição de elencar os direitos e garantias fundamentais, o constituinte de 1988, ciente e
consciente de um passado de todos
lembrado, porque reflete as crises da Democracia brasileira ocorrentes desde os
primórdios da República, projetou, com precisão, a garantia contra possíveis
tentativas de agressões aos direitos
humanos e à cidadania, regrando o
que hoje se procura banalizar: a emenda à Constituição.
Após
fixar em seu art. 60 a titularidade para fazer a proposta, dispondo
expressamente sobre o tempo em que a Constituição não poderá ser emendada ( “na vigência de intervenção federal, de estado de defesa
ou de sítio - art. 60,III § 1º), de forma destacada e reveladora da preocupação para com o resguardo aos direitos humanos, no § 4º
, inc. IV do mesmo artigo 60 consagra:
“§
4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
Ï,II,III
IV
- os direitos e garantias individuais.”
É
o que está consagrado no constitucionalismo brasileiro com a denominação de cláusulas pétreas. A
partir do art.5º, a Constituição expressa os direitos e garantias fundamentais. E não fica só nisso: cuida ao
longo de seu texto, dos direitos políticos, da saúde, da previdência social, da
assistência social, da educação, do meio ambiente, da Família, da Criança, do
Adolescente, do Idoso, da maioridade penal, revelando-se, assim, uma das mais
avançadas sobre o que se deva entender por direitos
humanos.
No
art. 5º estão visualizados os direitos e garantias individuais. Nele, consagram-se o que se
pode denominar de princípios constitucionais processuais, pois que será através
da instrumentalidade do processo, aqui do processo penal, que terão eles
a instrumentalização e complementaridade indispensáveis à sua real eficácia e
efetivação. Pois assim está dito:
“...o
direito processual penal é - porventura em medida superior a qualquer outro
ramo do direito ordinário - “direito constitucional aplicado”, “sismógrafo” ou
“espelho da realidade constitucional” sintoma do espírito
político-constitucional de um
ordenamento jurídico...” (Figueiredo Dias, “Para uma Reforma Global do
Processo Penal Português”, in “Para Uma Nova Justiça Penal”,1996/194).
Para
atendimento da garantia jurisdicional e
efetivo reconhecimento dos direitos
humanos e pronto atendimento contra possíveis violações ou ameaças às
liberdades fundamentais, impõem-se regras processuais penais ágeis e de pronta resposta, na medida em que
deve-se entender as formas do processo penal como um código de liberdade e de
defesa da cidadania, isto é, dos direitos fundamentais.
Como
diz Frederico Marques:
“Nesse conjunto de normas e preceitos agasalhados no texto
constitucional, é que a ciência processual vai haurir a seiva que alimentam
seus postulados e regras
fundamentais...”
E,
assim sendo, fácil concluir com o processualista Eduardo Couture, de que
as normas processuais são “o
texto que regulamenta a garantia da justiça contida na Constituição. Eis, então, o drama que se observa
na realidade brasileira: para execução e efetivação das garantias constitucionais da moderna estrutura de reconhecimento de direitos humanos e liberdades
fundamentais, o Brasil tem um Código de Processo Penal calcado em estruturas
antidemocráticas, pois que erigido em época obscura para as liberdades públicas
no país.
Quem
quer que analise o vigente diploma processual penal, cuja fundamentação
filosófico política está demonstrada na
sua Exposição de Motivos e refletida no corpo do diploma legal, verá a oposição de muitos de seus
institutos frente à realidade
constitucional democrática. E nem seria de outra forma: ele não poderia fugir das diretrizes constitucionais que lhes serviram de
base nem muito menos do que representava a Carta outorgada de
1937, do sistema autoritário do Estado Novo. À semelhança do Código de Processo
Penal de Portugal, de 1929, ele representa “uma época jurídico política anti democrática.”
Sendo
assim, se há um divórcio político formal
e estrutural do vigente Código de Processo Penal para com os preceitos da
Constituição democrática de 1988, torna-se difícil ou quase impossível querer-se adequá-lo com reformas setoriais, pinçamentos
localizados, adaptações plásticas ou cosméticas, às garantias constitucionais processuais de
um Estado de Direito Democrático. Alie-se
a esse conflito político-ideológico, uma estrutura tecnicamente superada, uma
linguagem que não representa a moderna ciência processual e suas novas
concepções. Disso resultam dificuldades
insuperáveis de adaptação, diferenças de forma e de conteúdo entre o contido no Código de 1941 e leis
processuais penais posteriores, superação técnica dos institutos e, acima de
tudo, inadequação ideológica.
Um
Código de Processo Penal representa a garantia da liberdade do cidadão frente
ao poder repressivo e opressor do Estado, ao contrário do Código Penal, este
fixando tipificações de condutas
reprováveis e conseqüentes sanções, como forma de buscar-se volta à
tranqüilidade social quebrada ou rompida pelo ilícito praticado. É
a tutela da liberdade que deve ser, à semelhança da Constituição, que abre seu
texto com os direitos e garantias
fundamentais, a preocupação primeira
de um Código de Processo Penal democrático. Isso porque “Leis
do processo são o complemento necessário das leis constitucionais” e as
“formalidades do processo são as atualidades das garantias constitucionais.”(João Mendes Júnior).
Uma
acusação contra o cidadão, que tem em seu favor a garantia de presunção de inocência,
consagrada nos textos internacionais e, assim, na Constituição Federal, não
pode ser apenas formalmente posta no processo penal. Veja-se,
fundamentalmente, a acusação a ser formulada contra um cidadão: mais do que
possibilidade jurídica, legitimação para agir, interesse para agir (art. 43 do
CPP), fundamental, para garantia de liberdade, é que exista justa causa para essa acusação.
Para
substituir o ainda vigente Código de Processo Penal de 1941, do Estado Novo, um
anteprojeto, total, foi aprovado, em 1976, pela Câmara dos Deputados, após ser
trazido à discussão e debates pela comunidade do processo penal, sendo, no
entanto, retirado, quando já se encontrava no Senado Federal ( Projeto Frederico
Marques). Nele, de se destacar a preocupação com a justa causa como previsão fundamental para uma acusação:
“Art.
10 - não será proposta ação pública ou privada, sem
legítimo interesse ou justa causa.
Par.único
- a acusação que não tiver fundamento razoável será rejeitada, de plano, por falta de justa causa.”
...........
Art.246
- a denúncia ou queixa não poderá ser apresentada sem estar instruída com os autos do inquérito policial ou com
documentos que mostrem haver justa causa
para a acusação.
Esse projeto, aprovado
pela Câmara dos Deputados e retirado, posteriormente, do Senado Federal, foi
revisto e adequado à nova lei penal, mantendo, porém, a justa causa como elemento
para recebimento da acusação. Esse novo
anteprojeto, de 1995, (que tomou o número Projeto de Lei nº 4.895/95), trazia a
seguinte redação:
Art.
396 - A denúncia ou queixa será rejeitada quando:
I - manifestamente inepta, ou por faltar
pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal;
II
- não houver justa causa para a
acusação;
III
- o juiz considerar plenamente comprovada a defesa e absolver sumariamente o
acusado.”
Como
diz a Min. e profa. Maria Thereza Rocha de Assis Moura:
“Se
tomarmos como base o conceito amplo, processual penal, de justa causa, como causa secundum
ius, ou seja, causa lícita,
agasalhada pela ordenação jurídica, chegaremos à conclusão de que a análise da justa causa, ou seja da justa razão,
ou razão suficiente para a instauração da ação penal não se faz, apenas,
de maneira abstrata, mas, também, e principalmente, em hipótese calcada na conjugação dos elementos que demonstrem a
existência de fundamento de direito e de fato para incoação do processo, a
partir do caso concreto.
......
Não
basta que a restrição imposta tenha aparente lastro legal, por estar prevista
no direito escrito; se apesar disso, o ato de coação ( e uma acusação é um ato de coação), entrar em choque...com as regras que a
ordem jurídica adota no campo processual, será ilícito, e, além disso,
profundamente imoral.”( “Justa Causa Para a Ação Penal Condenatória no Direito
Brasileiro”, pg. 227/228).
Disso
decorre que a indispensabilidade da justa
causa é o ponto-base para que se possa acolher uma acusação formal contra o cidadão, que tem em seu favor a
garantia constitucional da presunção de inocência. E, se assim é, o juízo de admissibilidade
ou não para recebimento de uma denúncia ou queixa é essencialmente uma decisão
de mérito, e, por conseguinte, obrigatório
e essencial seja ele fundamentado O que já é estabelecido na
Constituição:
“Art.93 - I, II, III. ....
IX
- todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário serão públicos e fundamentadas as suas decisões, sob pena de nulidade, podendo a
lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença em determinados atos,
às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes;”
Comparando-se o Código de
Processo Civil de 1939 com o Código de Processo Penal de 1941, ver-se-á que o
diploma de processo civil já era muito mais moderno e terminologicamente
superior ao do processo penal, o que política e juridicamente também é
explicável. No entanto, em 1973, eis
um novo Código de Processo Civil, moderno na linguagem, nos institutos, no seu
sentido finalístico para asseguramento de uma pronta prestação jurisdicional, e
assim, sua estrutura vem permitindo que reformas setoriais possam ser feitas,
retirando-se pontos de estrangulamento
na sua aplicação, atualizando-se e introduzindo novos institutos, como, por exemplo, a antecipação
da tutela, ou tutela antecipada, sem dúvida extraordinário avanço na
realidade prática das regras do processo civil.
Veja-se o Código Penal, que é de 1940: substituiu-se toda
a Parte Geral, em 1984, o que vem permitindo sua adequação a novas realidades,
como, por exemplo, a ampliação das penas restritivas de direitos, a introdução,
progressiva, das penas alternativas. É
imperativo, pois, que se busque um novo Código de Processo Penal, democrático e
com vista à pronta garantia dos direitos
fundamentais. Da mesma forma como os que fazem a ciência penal não podem
continuar aceitando a permanência da
Parte Especial do Código Penal, de 1940, deixando a tipicidade e sanções dos
crimes no reboque de leis penais especiais, extravagantes, mal elaboradas e ao arrepio do moderno direito Penal , vindas
para justificar um não se sabe o que e para atender um não se sabe a quem..
C O N C L U S Ã O
Ao terminar, fica a preocupação: será que emendas,
reformas, mudanças de textos, apenas aperfeiçoamento de institutos processuais,
tornará mais ágil, melhor e mais rápido
o acesso à justiça, à prestação jurisdicional, ao pleno exercício da
cidadania entre brasileiros, ao império dos direitos humanos? Ou será que, além disso, e principalmente muito
mais do que isso, não terá de
ocorrer uma mudança ética, de
consciência do cidadão, entre destinatários e detentores do Poder, entre os que
provocam a atividade jurisdicional do Estado e entre os aplicadores da norma? Será
que os exemplos vindos “de cima” não estão a contaminar o agir e o
proceder dos que não apenas olham, mas
vêm? Isso, já alertava Paulo, o servo de Jesus Cristo, na sua
“Carta aos Romanos”(6, nº 19):
“Porque, como pela
desobediência de um só homem muitos se tornaram pecadores, assim também por
meio da obediência (do exemplo) de um só muitos se tornarão justos.”
Lamentavelmente,
o que se está a ver é muitos deixarem de ser justos e honestos por conta dos
exemplos de uma injustiça e de uma falta
de ética descendente. Veja-se o que dizia, já, o insuperável Pontes de
Miranda, nos idos de 1924, em “À Margem da História da República (idéias,
crenças e afirmações):
“Não
há nenhum país em que sejam tão irresponsáveis
e tão irresponsabilizados os dirigentes, os funcionários e os próprios particulares. Nada se apura; só
há um limite para os desmandos e a dilapidação dos dinheiros públicos, dos
incapazes, das instituições: o apetite dos funcionários, governantes e
gestores. A melhor indústria é o tesouro; cada Governo traz seus programas e os
programas, a despeito da vigilância de
alguns Presidentes, logo se tornam função dos interesses de certos
capitalistas. É tão bem organizado o assalto mensal, anual, ao erário público,
que há um consorcium para as
concorrências e só este pode conseguí-las. O lucro é tão grande que dá para ser dividido por mais de vinte membros do grupo.... . Na
República não há exemplo de responsabilização real e justa dos políticos...E o
país, pobre, desmoralizado, cambaleia por ai a fora, megalomaníaco, no seu
gigantismo doentio de colosso esquálido
e corroído... Já no Império, dizia o Marquês do Paraná que os partido
estavam em decadência. Mais acertado fora afirmar, com Nabuco de Araújo,
que se transformavam. Com a República, sim, decaíram, morreram. Veio a covarde
esperteza das conciliações que matou os partidos. No vazio, deixado por eles,
entrou o antagonismo entre governantes e governados, o divórcio entre o povo e
o governo. Ainda hoje, é justa a frase de Nabuco; “Qual o remédio da
situação? É que venham as idéias...”.(“Incorporação das Normas
Internacionais de Proteção dos DH no
Direito Brasileiro”, pg 275).
Em 1924, o jurista maior
assim visualizava o Brasil. Mudou muito o país, sob o aspecto ético, setenta e
quatro anos depois? Que venham as
idéias, como disse Nabuco, e que através delas e das ações delas
nascidas, que se consagrem efetivamente os direitos fundamentais e que o
processo penal sirva a todos, igualitariamente, como regra de resguardo e
proteção da liberdade do cidadão. Para
que não permaneça como crua e dura realidade, o canto versejado de Martin
Ferro, trazidos por José Hernandez, que lamentavelmente ainda é uma
constante:
“A
lei se faz para todos,
mas
só aos pobres alcança.
A
lei é teia de aranha,
na
ignorância eu explico:
não
a tema, quem for rico,
tampouco
aquele que ordena.
Rompe
a teia o bicho grande,
aos
fracos enreda e condena.
Pois
a lei é como a faca,
não
fere a quem a maneja.”
Raiou faz anos o século
XXI. É preciso que todos tenham consciência
da necessidade dos direitos
humanos para o exercício da cidadania, fornecendo ao povo brasileiro o que
lhe foi ou está sendo propositadamente esquecido. Essencial é que cada um possua sensibilidade
bastante para olhar além do horizonte e descobrir, em cada ato, o encanto das
coisas, a beleza da vida. E que seja
capaz de lutar para que o próximo goze
dos direitos humanos e possa,
também perceber a beleza, a cor, o som e a luz que o mundo pode ofertar em um
só e único tempo, o tempo da sua vida. Pois assim falou o poeta de Pernambuco:
“A
vida é um só minuto,
A
vida é um só momento.
Quando
é mais e mais que isto
é
viver o já vivido
no
mesmo desolamento.”
(Joaquim Cardoso)