sexta-feira, 28 de agosto de 2015

Direitos fundamentais, Garantias Constitucionais e Processo Penal.



Ao falar de direito e tecnologia, ao contextualizar o direito diante de tamanhas mudanças comportamentais, não há como não falar sobre nossos direitos fundamentais e nossas garantias constitucionais.
O meio virtual nos traz uma nova possibilidade de hiperdimensionamento de danos (em todos os seu sentidos), bem como aumenta o número de ações podem ser consideradas crimes. Sim! Crimes virtuais.
Para iniciar uma conversa sobre a violação desses direitos e garantias no meio virtual, é necessário, inicialmente, entender o meio físico. O Prof. Nilzardo Carneiro Leão, nos brinda com sua brilhante explanação. Em um post posterior trarei a mesma ideia de violação no meio virtual.


Aproveitem a leitura.


Abraço,


Paloma Mendes




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DIREITOS  FUNDAMENTAIS,  GARANTIAS CONSTITUCIONAIS E PROCESSO  PENAL

NILZARDO  CARNEIRO  LEÃO

A nominação dada ao presente trabalho, pela necessidade de compreensão do mais amplo e genérico para depois chegar-se à especificidade, sem que haja prevalência ou predominância  de um sobre o outro  na escala valorativa  do entender científico  e reconhecimento e aplicação no Estado de Direito Democrático,  representa a consciência  de que é na aplicação dos direitos fundamentais no âmbito interno que se irá determinar as regras e preceitos  não apenas em uma Constituição, diploma maior na estrutura do Estado, como no processo penal, este entendido como a projeção prática, a “longa manus” da regra constitucional  garantidora dos direitos e liberdades fundamentais.

A análise e compreensão dos direitos fundamentais  no universo do Direito impõe uma precisão de linguagem para entendimento da sua exteriorização em princípios, ou seja, compreensão e precisão de conceitos.

A formulação de um sistema de liberdades - e o conjunto constitucional dos direitos e garantias fundamentais  é o sistema maior do Estado de Direito Democrático há de encontrar, no seu universo, proposições que se compreendam através  de conexões e complementações terminológicas, que permitam  sua aplicação rápida através das regras do processo penal.  Porque direitos fundamentais, direitos humanos, não são nem podem ser enfocados como objeto apenas e exclusivamente acadêmico ou técnico.  Eles existem, pois reconhecidos, para serem aplicados.

Claro, porém, que para ser construído esse sistema, representativo de um conjunto de princípios  ( de direitos e garantias fundamentais) , ou melhor dizendo, para diferenciar os múltiplos universos do conhecimento, destacando e dando dignidade aos direitos humanos, o homem utiliza palavras, expressões, termos,  construções gramaticais especiais, etc., já destacado, isso, por  Hegel, ao demonstrar que a linguagem é o momento de ter o homem a percepção do ser:


“A linguagem dá às sensações ou representações uma segunda existência, mais alta do que a imediata, uma existência que tem vigor  no domínio da representação.” (in “Introdução ao Pensar”, de A.Buzzi, pg.20).

Da maior importância, pois, a perfeita aplicação da linguagem e utilização da palavra, isto é, a exata terminologia, para precisar o saber científico, especificando e valorando cada objeto que se pretende conhecer e concisa no seu real conceito. O valorar palavras e criar significados constitui uma das dimensões do ser-no-mundo.  Disso decorre ser fundamental, para compreensão do pretendido, direitos humanos e suas garantias, a segurança e harmonia  conceituais, porque através da expressão, no tempo histórico, será possível a construção não só de estruturas a nível constitucional, como de técnicas de desenvolvimento e aplicações práticas através do processo penal.


A introdução que ora se faz torna-se indispensável, na medida em que se venha buscar o entendimento do que seja direitos humanos, erigidos como regras de direito  supra-estatais, como normas constitucionais de direitos e garantias individuais no direito interno e a ser efetiva e plenamente aplicada através do processo penal, pelo que a linguagem tem de ser precisa, clara e conceitualmente exata.

Se a expressão direitos humanos é pouco significativa sob o aspecto cientifico e até mesmo redundante na sua precisão (há outros direitos que não sejam humanos?), impõe-se a manutenção do termo pela consagração e pela aceitação internacionais,  com o objetivo de trazer a compreensão de que há  um grupo de direitos diferenciados dos demais, pela sua importância e essencialidade para o Homem na sua individualidade, como ser social, e para a compreensão do Estado de Direito Democrático. Aqui, algumas indagações podem ser feitas:
a - quais são esses direitos?
b - como se distinguem de outros direitos?
c - quais são suas estruturas e caracteres?
d - como evoluíram esses direitos no tempo e no espaço?
e - como surgiram as Declarações de Direitos?
f - quais são, na atualidade, os direitos humanos reconhecidos?
g - estão eles completados ou podem surgir novos direitos?
h - quais os mecanismos legais de direito interno garantidores desses direitos?
i - como devem ser estruturadas a regras de processo penal para garantia pronta e eficaz desses direitos?

Não é aqui o momento de desenvolver-se, com detalhes , sob o ponto de vista terminológico, quais as diferentes denominações  para esses direitos até sua consagração , inclusive pela Organização das Nações Unidas, de  Direitos do Homem, Direitos Humanos. Mas, uma rápida incursão poderá destacar, através dos tempos, como foram e são vistos, compreendidos e nominados esses direitos:

a - revelados por Deus (Moisés - Lei das XII Tábuas) ou  direitos criados pelo Homem;
b - Direitos Naturais ou Direitos Adquiridos (conquistados);
c - Direitos Primários ou Direitos Secundários;
d - Direitos Construtores ou Direitos Construídos
e - Direitos Imediatos ou Direitos Mediatos.

Norberto Bobbio, o grande jus-filódofo italiano, dá-nos a sua importante concepção sobre o surgimento, crescimento e ampliação constante dos direitos humanos Diz:


“Do ponto de vista  teórico sempre defendi que os direitos do homem, por mais fundamentais que sejam, são direitos históricos, ou seja, nascidos em certas circunstâncias, caracterizados por lutas em defesa de novas liberdades, contra velhos poderes, e nascidos de modo gradual , não de uma só vez e nem de uma vez por todas.
O problema - sobre o qual, a que parece, os filósofos são convocados a dar seu parecer - do fundamento absoluto, irresistível, inquestionável, dos direitos do homem é um problema mal formulado: a liberdade religiosa é um efeito das guerras de religião; as liberdades civis, da luta dos parlamentos contra os soberanos absolutos; a liberdade política e as liberdades sociais  do nascimento, crescimento e amadurecimento do movimento dos trabalhadores assalariados, dos camponeses com pouca ou nenhuma terra, dos pobres que exigem dos poderes públicos não só o reconhecimento da liberdade pessoal e das liberdades negativas, mas também a proteção  do trabalho contra  o desemprego, os primeiros rudimentos de instrução contra o analfabetismo, depois a assistência para a invalidez e a velhice...”( “A Era dos Direitos”, pg5).


A serem aceitos os fundamentos trazidos pelo jurista italiano, é de se chegar,  à conclusão de que os direitos humanos, na atualidade, têm como problema fundamental não o justificá-los mas protegê-los, e, também, que sendo históricos, nascem e crescem com a cultura.   A cultura é, fundamentalmente, a capacidade que tem o homem, e por conta disso, a sociedade, de refletir sobre si mesma . Cultura apresenta acima de tudo, visão,  revisão e previsão, isto é, o conhecimento aplicado nas três dimensões do tempo, ou seja, de um passado  pensado e  revisto, com o que se poderá cavalgar realidades sociais do já vivido, através da ação presente  e projetando-se para o porvir. Três tempos, o passado, o presente e o futuro existentes em um tempo único, o da vida de cada um, caracterizando-se pelo processo  de pensar “o que fazer, quando fazer, porque fazer.”


Ela, a cultura, existe na medida  em que pessoas se colocam  frente a outras  como seres que se relacionam socialmente, buscando direitos, revelando-se como uma forma de pensamento que se materializa no viver e conviver sociais, sendo, pois, dinâmica, eis que produto da vida vivida, que se compreende em mutação, e histórica, na medida em que está atrelada ao homem e partindo do que surge e se compreende como fundamental: os direitos humanos. A Cultura  é sempre múltipla, já que não existe uma única visão da realidade, da sociedade e do mundo, mas diferentes visões  que se confrontam e se debatem e a sua manifestação caracteriza os padrões e formas de viver do homem situado no tempo.

Se assim é, a história do homem, a história do homem no tempo, que é também sua cultura, faz desenvolver e reconhecer o que sejam direitos humanos. Daí dizer-se:   não nascem todos de uma vez. Nascem quando devem e podem nascer.” Isso faz destacar a assertiva de Oliveira Baracho:

“Ocorre um enriquecimento considerável da lista de direitos e liberdades, pelo que os constituintes e legisladores enunciam liberdades omitidas ou desconhecidas nas origens do liberalismo. As formulações abstratas e vagas são abandonadas, pelo que dão lugar ao reconhecimento de direitos concretos dos indivíduos situados em seu contexto social e econômico. Aparecem direitos de grupos (famílias, associações,  sindicatos, surgem mediadores e corpo intermediário); os direitos econômicos e sociais  que ampliam largamente  os direitos civis já proclamados: direito ao seguro social, ao trabalho, ao lazer, à educação, à cultura e o direito de greve.”

 
A que se pode acrescer direito a um desenvolvimento sustentável, a uma natureza ecologicamente sadia, na medida em que representa ótica diferenciada do direito à vida e do direito à saúde. A evolução, ou multiplicação dos direitos humanos tem, pois, íntima relação e conexão com a mudança social, que, exatamente por ser mudança, traz em si a aquisição, sempre, de novos direitos fundamentais, direitos humanos.
Pode-se, então, falar em gerações de direitos humanos, que não é para provocar uma feição fragmentada, mas para ampliar, sempre, a visão globalista do que representam e significam como um todo uniforme  e indiferenciado. Cuidar de geração não significa sucessão geracional, mas seu preenchimento no tempo histórico ou a nível cultural.  Daí falar-se em direitos humanos de primeira, segunda, terceira, etc. gerações, que não significa, de forma alguma, sucessividade de direitos. Um não é a negação nem mais significativo que outro, mas completam-se e não só complementam-se. E mais, alguns desses direitos foram progressivamente  desdobrando-se e mesmo  ampliando-se em seu campo de efetividade.  Pode-se, pois, sem diminuição ou mais valia  de qualquer dos direitos humanos, cuidar-se em grupamentos,  aqui de ordem meramente metodológica e similitude:
De primeira geração ( direitos individuais - direitos políticos)
a - direito à vida e direito de locomoção;
b - direito à liberdade política;
c- direito à igualdade, inclusive social;
d - direito à liberdade religiosa e de culto;
e - direito à proteção contra a tortura;
f - direito à educação e instrução;
g - direito ao devido processo legal, com instrução processsual contraditória e plenitude de defesa;
h - direito a ser presumido inocente e direito ao silêncio;
i - direito à inviolabilidade da casa e de proteção contra prova ilícita;
j -  direito ao duplo grau de jurisdição e a decisões fundamentadas;
l - direito às garantias dos direitos fundamentais (HC e MS);
m - direito a igual proteção e assistência jurídica técnica;
n - direito de voto e de participação ativa e passiva na organização do Estado (direito à participação política);

De segunda geração:

a - direito ao trabalho;
b - direito à saúde;
c - direito de organização;
d - direito de greve;
e - direito à proteção social;
f - direito a um salário digno;
g - direito de proteção à família (direito de proteção à criança e ao idoso);
h - direito ao uso social da propriedade;

De terceira geração (protetivo ou desenvolvimento sustentável)
a - direito  a uma vida sadia;
b - direito à proteção da natureza (direito de proteção à fauna, à flora);

Têm esses direitos de terceira geração um conteúdo de heterogeneidade e diversificação, forma difusa, de proteção a direitos de grupos, de minorias de qualquer natureza, etc.

Já na atualidade, cuida-se de uma quarta geração de direitos, que vem trazendo grande preocupação à comunidade científica e humanística, pelo aumento na capacidade do homem do conhecer e desenvolver novas tecnologias do saber, ante o aspecto não apenas dramático  mas principalmente ético, face às  repercussões sobre a humanidade, ante possível mau uso dessa apreensão de conhecimentos:

a - direito à pesquisa biológica;
b - direito à engenharia genética;
c - direito à experimentos nucleares;
d - direito à exploração da informática;

Vê-se, pois, que direitos fundamentais ampliam-se e não se esgotam no tempo.

A compreensão dos direitos fundamentais não valem só para o Homem na sua individualidade: eles representam a projeção de sua dignidade frente ao Estado.  Direitos humanos  significa sociabilidade, porque a sociedade contemporânea, exatamente por seu desenvolver histórico e cultural, reconhece que o homem, qualquer homem, tem direitos ante o Estado e que é dever desse mesmo Estado, respeitá-los e garanti-los, e organizar-se de forma tal que possa satisfazer sua plena realização,  fornecendo o exato conceito do Estado de Direito. Do Estado de Direito Dem0ocrático.

Pedro Nikken, cuidando do “Conceito de Direitos Humanos”, destaca que o reconhecimento  desses direitos não é apenas concessão da sociedade mas exigência que se desdobra em:

a - Estado de Direito, onde o exercício do poder  deve sujeitar-se a regras  e mecanismos para proteção e garantia dos direitos humanos;
b - universalidade: proclamados na Declaração de Viena em 25 \/Junho/93 e adotada pela Conferência Mundial dos Direitos Humanos de que “não se admitem dúvidas”, pois são universais, indivisíveis e independentes e os Estados têm o dever, sejam quais forem seus sistemas políticos, econômicos e culturais, de promover e proteger todos os direitos humanos e as liberdades fundamentais”;
c - transnacionalidade: se os direitos humanos são inerentes à pessoa, não dependem da nacionalidade, território, cor, religião, sexo: ela os portará sempre, pois estão eles acima dos Estados e da soberania. Daí o crescimento cada vez maior de organizações internacionais não convencionais;
d - irreversibilidade: uma vez sendo determinado direito  formalmente reconhecido como inerente à pessoa humana, fica definitiva e irrevogavelmente integrado à categoria daqueles cuja inviolabilidade deve ser respeitada e garantida. Daí não admitir relativismos  nem reversibilidade, não podendo deixar de ser reconhecido  por decisão governamental;
e - elasticidade: como são inerentes   à pessoa, sempre è possível, pela cultura e pelo desenvolvimento histórico, estender o âmbito de proteção de um direito, erigido e reconhecido como direitos humanos, e, assim,  anteriormente  não conhecidos nem gozados.


Não basta, porém, ser formalmente Estado  de Direito: impõe-se para plena garantia e reconhecimento dos direitos fundamentais , que haja um Estado Democrático de Direito. Essa a lição do Prof. Canotilho, constitucionalista português:

“Quer se trate dos direitos fundamentais clássicos, quer dos modernos direitos sociais, econômicos e culturais, a eles cabem importantes funções no Estado de Direito Democrático. Em primeiro lugar, uma função democrática: são direitos subjetivos de participação na vontade política, motivos pelos quais são considerados como “fundamentos funcionais da democracia”. Em segundo lugar uma função social: eles são o fundamento de prestações sócio-econômicas,, sociais e culturais do Estado em favor dos cidadãos. Em terceiro lugar, os direitos  têm uma função de garantidor do Estado de Direito”

 
Se os diplomas internacionais, consagrados e reconhecidos pelos Estados destacam os direitos fundamentais, mais do que evidente que esse reconhecimento  fazem-nos penetrar no âmbito do direito interno desses mesmos Estados, em autêntica concreção, ao disposto nos textos constitucionais. No Brasil, destaca-se que o Estado de Direito Democrático tem como fundamentos, dentre outros, a cidadania e a dignidade da pessoa humana.

O exercício da cidadania, que é a conduta do homem no meio social, projeta, sempre, o exame de uma relação de poder, porque em todo relacionamento humano sempre há de ser conjugado dialeticamente seus elementos básicos: detentor e destinatário da ordem, onde o essencial para o Estado, detentor do mando e do comando,  será o reconhecimento da dignidade da pessoa humana. Mais ainda: a estrutura democrática brasileira, com seus sistemas de controle e uso do poder, garante ao homem o exercício da cidadania e os direitos fundamentais, de tal forma que, expressamente, consagra em suas relações internacionais, dentre seus princípios, o da prevalência dos direitos humanos.
De se destacar que o aceito e reconhecimento pelo Brasil no âmbito internacional, através das Declarações de Direitos e Convenções, passam a integrar o próprio campo do direito interno de natureza constitucional:

 “Art.5º
§2º - Os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.”


E se no art. 5º, cuidou a Constituição de elencar os direitos e garantias fundamentais, o constituinte de 1988, ciente e consciente  de um passado de todos lembrado, porque reflete as crises da Democracia brasileira ocorrentes desde os primórdios da República, projetou, com precisão, a garantia contra possíveis tentativas de agressões aos direitos humanos e à cidadania, regrando o que hoje se procura banalizar: a emenda à Constituição.

Após fixar em seu art. 60 a titularidade para fazer a proposta, dispondo expressamente sobre o tempo em que a Constituição não poderá  ser emendada ( “na vigência  de intervenção federal, de estado de defesa ou de sítio - art. 60,III § 1º), de forma destacada  e reveladora da preocupação para com o  resguardo aos direitos humanos, no § 4º , inc. IV do mesmo artigo 60 consagra:

§ 4º - Não será objeto de deliberação a proposta de emenda tendente a abolir:
Ï,II,III
IV - os direitos e garantias individuais.”

É o que está consagrado no constitucionalismo brasileiro com a denominação de cláusulas pétreasA partir do art.5º, a Constituição expressa os direitos e garantias fundamentais. E não fica só nisso: cuida ao longo de seu texto, dos direitos políticos, da saúde, da previdência social, da assistência social, da educação, do meio ambiente, da Família, da Criança, do Adolescente, do Idoso, da maioridade penal, revelando-se, assim, uma das mais avançadas sobre o que se deva entender por direitos humanos.

No art. 5º estão visualizados  os direitos e garantias  individuais. Nele, consagram-se o que se pode denominar de princípios constitucionais processuais, pois que  será através  da instrumentalidade do processo, aqui do processo penal, que terão eles a instrumentalização e complementaridade indispensáveis à sua real eficácia e efetivação. Pois assim está dito:


“...o direito processual penal é - porventura em medida superior a qualquer outro ramo do direito ordinário - “direito constitucional aplicado”, “sismógrafo” ou “espelho da realidade constitucional” sintoma do espírito político-constitucional  de um ordenamento jurídico...” (Figueiredo Dias, “Para uma Reforma Global do Processo Penal Português”, in “Para Uma Nova Justiça Penal”,1996/194).


Para atendimento da garantia jurisdicional  e efetivo reconhecimento dos direitos humanos e pronto atendimento contra possíveis violações ou ameaças às liberdades fundamentais, impõem-se regras processuais penais ágeis  e de pronta resposta, na medida em que deve-se entender as formas do processo penal como um código de liberdade e de defesa da cidadania, isto é,  dos direitos fundamentais.

Como diz Frederico Marques:
Nesse conjunto de normas e preceitos agasalhados no texto constitucional, é que a ciência processual vai haurir a seiva que alimentam seus postulados  e regras fundamentais...”


E, assim sendo, fácil concluir com o processualista Eduardo Couture, de que as normas processuais são “o texto que regulamenta a garantia da justiça contida na Constituição.  Eis, então, o drama que se observa na realidade brasileira: para execução e efetivação das garantias  constitucionais da moderna estrutura  de reconhecimento de direitos humanos e liberdades fundamentais, o Brasil tem um Código de Processo Penal calcado em estruturas antidemocráticas, pois que erigido em época obscura para as liberdades públicas no país.

Quem quer que analise o vigente diploma processual penal, cuja fundamentação filosófico política  está demonstrada na sua Exposição de Motivos e refletida no corpo do diploma legal,  verá a oposição de muitos de seus institutos  frente à realidade constitucional democrática.  E nem  seria de outra forma: ele não poderia  fugir das diretrizes  constitucionais que lhes serviram de base  nem muito menos  do que representava a Carta outorgada de 1937, do sistema autoritário do Estado Novo. À semelhança do Código de Processo Penal de Portugal, de 1929, ele representa “uma época  jurídico política anti democrática.”

Sendo assim, se há um divórcio político  formal e estrutural do vigente Código de Processo Penal para com os preceitos da Constituição democrática de 1988, torna-se difícil ou quase impossível  querer-se adequá-lo  com reformas setoriais, pinçamentos localizados, adaptações plásticas ou cosméticas,  às garantias constitucionais processuais de um Estado de Direito Democrático. Alie-se a esse conflito político-ideológico, uma estrutura tecnicamente superada, uma linguagem que não representa a moderna ciência processual e suas novas concepções.  Disso resultam dificuldades insuperáveis de adaptação, diferenças de forma e de conteúdo  entre o contido no Código de 1941 e leis processuais penais posteriores, superação técnica dos institutos e, acima de tudo, inadequação ideológica.

Um Código de Processo Penal representa a garantia da liberdade do cidadão frente ao poder repressivo e opressor do Estado, ao contrário do Código Penal, este fixando  tipificações de condutas reprováveis e conseqüentes sanções, como forma de buscar-se volta à tranqüilidade social quebrada ou rompida pelo ilícito praticado. É a tutela da liberdade que deve ser, à semelhança da Constituição, que abre seu texto com os direitos e garantias fundamentais, a preocupação primeira  de um Código de Processo Penal democrático. Isso porque “Leis do processo são o complemento necessário das leis constitucionais” e as “formalidades do processo são as atualidades das garantias constitucionais.”(João Mendes Júnior).


Uma acusação contra o cidadão, que tem em seu favor a garantia de presunção de inocência, consagrada nos textos internacionais e, assim, na Constituição Federal, não pode ser apenas formalmente posta no processo penal. Veja-se, fundamentalmente, a acusação a ser formulada contra um cidadão: mais do que possibilidade jurídica, legitimação para agir, interesse para agir (art. 43 do CPP), fundamental, para garantia de liberdade, é que exista justa causa para essa acusação.

Para substituir o ainda vigente Código de Processo Penal de 1941, do Estado Novo, um anteprojeto, total, foi aprovado, em 1976, pela Câmara dos Deputados, após ser trazido à discussão e debates pela comunidade do processo penal, sendo, no entanto, retirado, quando já se encontrava no Senado Federal ( Projeto Frederico Marques). Nele, de se destacar a preocupação com a justa causa como previsão fundamental para uma acusação:
 
“Art. 10 - não será proposta ação pública ou privada, sem legítimo interesse ou justa causa.
Par.único - a acusação que não tiver fundamento razoável será rejeitada, de plano, por falta de justa causa.
...........
Art.246 - a denúncia ou queixa não poderá ser apresentada  sem estar instruída  com os autos do inquérito policial ou com documentos que mostrem haver justa causa para a acusação.

Esse projeto, aprovado pela Câmara dos Deputados e retirado, posteriormente, do Senado Federal, foi revisto e adequado à nova lei penal, mantendo, porém, a justa causa  como elemento para recebimento da acusação.  Esse novo anteprojeto, de 1995, (que tomou o número Projeto de Lei nº 4.895/95), trazia a seguinte redação:
 
Art. 396 - A denúncia ou queixa será rejeitada quando:
 I - manifestamente inepta, ou por faltar pressuposto processual ou condição para o exercício da ação penal;
II - não houver justa causa para a acusação;
III - o juiz considerar plenamente comprovada a defesa e absolver sumariamente o acusado.”
 
Como diz a Min. e profa. Maria Thereza Rocha de Assis Moura:


“Se tomarmos como base o conceito amplo, processual penal, de justa causa,  como causa secundum ius,  ou seja, causa lícita, agasalhada pela ordenação jurídica, chegaremos à conclusão de que a análise da justa causa, ou seja da justa razão, ou razão suficiente para a instauração da ação penal não se faz, apenas, de maneira abstrata, mas, também, e principalmente, em hipótese calcada  na conjugação dos elementos que demonstrem a existência de fundamento de direito e de fato para incoação do processo, a partir do caso concreto.
......
Não basta que a restrição imposta tenha aparente lastro legal, por estar prevista no direito escrito; se apesar disso, o ato de coação ( e uma acusação é um ato de coação), entrar em choque...com as regras que a ordem jurídica adota no campo processual, será ilícito, e, além disso, profundamente imoral.”( “Justa Causa Para a Ação Penal Condenatória no Direito Brasileiro”, pg. 227/228).
 
Disso decorre que a indispensabilidade da justa causa é o ponto-base para que se possa acolher uma acusação formal  contra o cidadão, que tem em seu favor a garantia constitucional da presunção de inocência. E, se assim é, o juízo de admissibilidade ou não para recebimento de uma denúncia ou queixa é essencialmente uma decisão de mérito, e, por conseguinte, obrigatório  e essencial seja ele fundamentado O que já é estabelecido na Constituição:

 “Art.93 - I, II, III. ....
IX - todos os julgamentos dos órgãos do Poder Judiciário  serão públicos e fundamentadas as suas decisões, sob pena de nulidade, podendo a lei, se o interesse público o exigir, limitar a presença em determinados atos, às próprias partes e a seus advogados, ou somente a estes;”


Comparando-se o Código de Processo Civil de 1939 com o Código de Processo Penal de 1941, ver-se-á que o diploma de processo civil já era muito mais moderno e terminologicamente superior ao do processo penal, o que política e juridicamente também é explicável.  No entanto, em 1973, eis um novo Código de Processo Civil, moderno na linguagem, nos institutos, no seu sentido finalístico para asseguramento de uma pronta prestação jurisdicional, e assim, sua estrutura vem permitindo que reformas setoriais possam ser feitas, retirando-se pontos de estrangulamento  na sua aplicação, atualizando-se e introduzindo  novos institutos, como, por exemplo, a antecipação da tutela, ou tutela antecipada, sem dúvida extraordinário avanço na realidade prática das regras do processo civil. 


Veja-se o Código Penal, que é de 1940: substituiu-se toda a Parte Geral, em 1984, o que vem permitindo sua adequação a novas realidades, como, por exemplo, a ampliação das penas restritivas de direitos, a introdução, progressiva, das penas alternativas. É imperativo, pois, que se busque um novo Código de Processo Penal, democrático e com vista à pronta garantia dos direitos fundamentais. Da mesma forma como os que fazem a ciência penal não podem continuar aceitando  a permanência da Parte Especial do Código Penal, de 1940, deixando a tipicidade e sanções dos crimes  no reboque de leis penais  especiais, extravagantes,  mal elaboradas e  ao arrepio do moderno direito Penal , vindas para justificar um não se sabe o que e para atender um não se sabe a quem..

C O N C L U S Ã O

Ao terminar, fica a preocupação: será que emendas, reformas, mudanças de textos, apenas aperfeiçoamento de institutos processuais, tornará mais ágil, melhor e mais rápido  o acesso à justiça, à prestação jurisdicional, ao pleno exercício da cidadania entre brasileiros, ao império dos direitos humanos? Ou será que, além disso, e principalmente muito mais do que isso, não  terá de ocorrer  uma mudança ética, de consciência do cidadão, entre destinatários e detentores do Poder, entre os que provocam a atividade jurisdicional do Estado e entre os aplicadores da norma? Será que os exemplos vindos “de cima” não estão a contaminar o agir e o proceder  dos que não apenas olham, mas vêm? Isso, já alertava Paulo, o servo de Jesus Cristo, na sua “Carta aos Romanos”(6, nº 19):

“Porque, como pela desobediência de um só homem muitos se tornaram pecadores, assim também por meio da obediência (do exemplo) de um só muitos se tornarão justos.”

Lamentavelmente, o que se está a ver é muitos deixarem de ser justos e honestos por conta dos exemplos de uma injustiça  e de uma falta de ética descendente. Veja-se o que dizia, já, o insuperável Pontes de Miranda, nos idos de 1924, em “À Margem da História da República (idéias, crenças e afirmações):

“Não há nenhum país em que sejam tão irresponsáveis e tão  irresponsabilizados os dirigentes, os funcionários  e os próprios particulares. Nada se apura; só há um limite para os desmandos e a dilapidação dos dinheiros públicos, dos incapazes, das instituições: o apetite dos funcionários, governantes e gestores. A melhor indústria é o tesouro; cada Governo traz seus programas e os programas, a despeito da vigilância  de alguns Presidentes, logo se tornam função dos interesses de certos capitalistas. É tão bem organizado o assalto mensal, anual, ao erário público, que há um consorcium para as concorrências e só este pode conseguí-las. O lucro é tão grande  que dá para ser dividido  por mais de vinte membros do grupo.... . Na República não há exemplo de responsabilização real e justa dos políticos...E o país, pobre, desmoralizado, cambaleia por ai a fora, megalomaníaco, no seu gigantismo  doentio de colosso esquálido e corroído... Já no Império, dizia o Marquês do Paraná que os partido estavam em decadência. Mais acertado fora afirmar, com Nabuco de Araújo, que se transformavam. Com a República, sim, decaíram, morreram. Veio a covarde esperteza das conciliações que matou os partidos. No vazio, deixado por eles, entrou o antagonismo entre governantes e governados, o divórcio entre o povo e o governo. Ainda hoje, é justa a frase de Nabuco; “Qual o remédio da situação? É que venham as idéias...”.(“Incorporação das Normas Internacionais  de Proteção dos DH no Direito Brasileiro”, pg 275).

Em 1924, o jurista maior assim visualizava o Brasil. Mudou muito o país, sob o aspecto ético, setenta e quatro  anos depois? Que venham as idéias, como disse Nabuco, e que através delas e das ações delas nascidas, que se consagrem efetivamente os direitos fundamentais e que o processo penal sirva a todos, igualitariamente, como regra de resguardo e proteção da liberdade do cidadão. Para que não permaneça como crua e dura realidade, o canto versejado de Martin Ferro, trazidos por José Hernandez, que lamentavelmente ainda é uma constante:
 
“A lei se faz para todos,
mas só aos pobres alcança.
A lei é teia de aranha,
na ignorância eu explico:
não a tema, quem for rico,
tampouco aquele que ordena.
Rompe a teia o bicho grande,
aos fracos enreda e condena.
 
Pois a lei é como a faca,
não fere a quem a maneja.”


Raiou faz anos o século XXI. É preciso que todos tenham consciência  da necessidade dos direitos humanos para o exercício da cidadania, fornecendo ao povo brasileiro o que lhe foi ou está sendo propositadamente esquecido. Essencial é que cada um possua sensibilidade bastante para olhar além do horizonte e descobrir, em cada ato, o encanto das coisas, a beleza da vida. E que seja  capaz de lutar para que o próximo goze  dos direitos humanos e possa, também perceber a beleza, a cor, o som e a luz que o mundo pode ofertar em um só e único tempo, o tempo da sua vida. Pois assim falou o poeta de Pernambuco:


“A vida é um só minuto,
A vida é um só momento.
Quando é mais e mais que isto
é viver o já vivido
no mesmo desolamento.”
(Joaquim Cardoso)

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